Colamos do Sermos esta moi interesante reflexão de Teresa Moure (nos comentários Teresa afirma: "Empoderar-se é procurar o poder ou usar as ferramentas do poder para mudar uma situação"):
1. Às vezes uma experiência diminuta, puramente biográfica, abre a brecha dum grande problema. Nestas semanas, enquanto apresentamos o ensaio Politicamente incorreta, vou chocando contra uma questão fulcral, tão gigantesca e emaranhada com outras, que resulta difícil de atacar. Para justificar a distancia crítica que qualquer autora deve adotar no que respeita às tendências de que bebe, a menos que quiser repetir mais do mesmo, insisto em criticar o empoderamento, ainda que isso produza algum não pretendido incomodo.
Tudo parte de que, quando publiquei Eu violei o lobo feroz observei como as pessoas que acudiam aos lançamentos tinham uma ideia estereotipada do texto que em absoluto coincidia com o que eu queria significar. Como para a promoção editorial deitamos nas redes sociais alguns anúncios cheios de carapuças sexies e músicas incitantes, e como o título do livro era deliberadamente provocador, o público achava que eu pretendia escrever sobre a vingança das carapuças que, finalmente, decidem agir contra o ameaçante lobo das fábulas morais. Essa foi a interpretação geral, embora eu pretendesse algo radicalmente diferente, como era a) a crítica contra o estado e as suas leis repressivas e b) a defesa dum tipo de violência interna, geradora de energia criativa, posto que o lobo, precisamente por ser inacessível, resulta sexualmente atrativo e politicamente insurgente. Quando conto isto sempre repito um mantra: “Nada podia estar mais longe do meu interesse que o canto à mulher empoderada, contrária como sou a todo poder”. Às vezes, quando escrevemos colocamos provocações nas nossas palavras duma maneira inconsciente e só, um passo ou dois andados, podemos advertir qual era a nossa intenção mais íntima. Vou descobrindo que a minha íntima intenção neste caso era abrir um debate nem só terminológico mas concetual sobre o termo empoderamento. O assunto é complexo porque o feminismo, um movimento que funciona em si próprio nas margens do poder, defendeu e defende esse conceito.
2. Uma consulta rápida aos dicionários remete o termo poder à capacidade de fazer algo e, automaticamente, ao exercício de mando, à possibilidade de dominar, influir ou exercer a força sobre outros seres ou sobre determinadas condições para mudá-las, impondo a própria vontade. Não é precisa uma análise muito subtil para perceber que se trata dum conceito com traços políticos e éticos. Quando dizemos “o poder pretende que sejamos obedientes”, não estamos a pensar numa energia benéfica que nos forme para a auto-superação, mas num sistema repressor que nos obriga a acatar, a submeter-nos. Porém, também é certo que nos dicionários e nas práticas de conversa habitual, o tal termo poder aparece ligado a uma segunda aceção, a de direito de deliberar e agir, à faculdade de exercer a própria soberania. Poderíamos agora recorrer à história do pensamento ocidental, de Macchiavello a Bertrand Russell, de Marx a Spengler, de Foucault a Paulo Freire, de Aristóteles a Nietzsche, para fazer as distinções oportunas sobre o que significa poder de maneira informada em cada obra, em cada escola filosófica ou em cada época mas não cairemos no academicismo. Não agora.
Interessa-me distinguir, de entrada, as duas aceções. A primeira é claramente negativa: um grupo social consegue impor-se através das armas quando uma elite domina um território e se faz com ele; as forças e corpos de segurança do estado exercem o seu poder sobre a povoação reclusa numa cadeia mediante torturas mais ou menos aceites -mesmo num sistema penitenciário particularmente suave, as pessoas pressas nem são livres nem dispõem da capacidade de distribuir o seu tempo no que quiserem-. Na segunda aceção, pareceria que o termo poder achega algo de positivo ao vincular-se a uma sorte de auctoritas, à aura que emana da pessoa que decide comportar-se de maneira autónoma, orientada pelos seus próprios critérios, como sujeito independente e sábio. Dai -ou nisso quero acreditar- arranca o conceito feminista de empoderamento. Pretende-se com o seu uso uma ação positiva, para acrescentar a fortaleza psicológica ou a capacidade efetiva na política e na sociedade de indivíduos discriminados -as mulheres, ainda que poderia empregar-se o termo noutros contextos- e geralmente implica o desenvolvimento da confiança nas próprias capacidades. Porém, se apenas pretendesse esta ação revitalizadora, o empoderamento seria denominado confiança, ou independência, ou soberania. Acho que quando se escolheu uma formação léxica construída a partir de poder não foi por acaso e , também, que cumpre neste momento histórico retificar. Não se trata pois de compartirmos o conceito e mudá-lo de nome por outro com melhor ressonância -que também-; trata-se de refletir sobre o que é que significa realmente empoderar-se. E isso exige alguma disposição à crítica interna que o feminismo maduro e militante está em disposição de assumir, em vez de qualquer palavra de ordem.
O feminismo dirige-se às mulheres, tradicionalmente educadas para a submissão, encorajando-as para abandonarem hábitos inculturados como o de aceitarem uma posição secundária na participação política ou nas responsabilidades profissionais e supõe que será a sua própria coragem -e a teia da sororidade- que proporcione a fortaleza para vencer modos de relação sexual e afetiva que condicionem a sua liberdade. A estrutura argumental, como tal, é sugestiva mas obriga a todas as mulheres a exercerem um duplo esforço que não se demanda dos homens por estarem em melhor ponto de partida: dito em breve, terão de ser necessariamente bravas, lutadoras incombustíveis, terão de suspeitar continuamente de tudo quanto a existência lhes ofereça e tornar hipercríticas. Como a violência de género se repete obstinadamente, a mulher empoderada suspeitará se qualquer atitude do seu companheiro é suscetível dessa leitura e passará a vida a castigar-se. Se assim rematasse a violência, os custos poderiam ser razoáveis... mas o fim não está garantido. Demanda-se das mulheres que denunciem. Não pedem só as feministas. Hoje os médios de comunicação burgueses e descafeinados insistem em persuadir com os telefones que não deixam marca dessa chamada. E talvez não demoramos muito a pensar no cisma que supõe para uma pessoa ligar o telefone e denunciar o outro membro desse nós íntimo que é um casal. A frase anterior não deve suscitar enganos: não estou a declarar que não se deva denunciar; estou simplesmente a valorar o enorme esforço que essa ação demanda duma pessoa supostamente debilitada.
Imaginemos por um momento um centro de ensino onde um professor exerce o poder de maneira abusiva. Imaginemos que na aula separa os indivíduos com melhores qualificações do alunado com menos sucesso académico, que permanecerá ao fundo a repassar os temas já vistos enquanto o grupo privilegiado acede à informação nova ou mais atrativa. Ou imaginemos que quotidianamente chama alguém de inútil ou de maçã podre que pode estragar a cesta inteira. Contrariamente ao que se puder pensar, os exemplos não são inventados; todas as pessoas que trabalhamos na docência sabemos que na prática escolar continuam a usar-se modelos repressivos. Pois, seria curioso um movimento pedagógico que, em vez de orientar-se a corrigir ao professor e a divulgar formas menos lesivas de exprimir a sua insatisfação profissional, exigisse do alunado menos motivado que colhesse de telefone e chama-se à inspeção assegurando-lhe que a sua chamada ia conservar-se como anónima. Num tal caso, pouco provável, a inspeção poderia iniciar um expediente e desencadearia uma série ilimitada de repressões e práticas de auto-defesa: seria uma caça de bruxas.
Não pretendo agora aprofundar na polémica questão das denúncias dos agressores mas acho, como muitas de nós, que mal podem ter consequências positivas quando as mulheres não tiverem uma rede de proteção e afetos ao seu redor. A fortaleza que exige a chamada tem de ser retroalimentada com cuidados do contorno imediato ou a que denuncia pode acabar sendo rapidamente assassinada... precisamente a causa dessa denúncia. Quando, na altura de 1465, Elvira Rodríguez, mulher de Ourense, denuncia o seu homem por maus tratos ainda não se descobrira América. Portanto, a sua ação, energética e subversiva, não se deve ao campo de conhecimento proporcionado pelo feminismo, mesmo se constitui um episódio fundamental do ponto de vista histórico. Uma galega tornava na primeira mulher da Europa em atingir um objetivo imprevisível: que um juiz lhe desse a razão para deixar de conviver com o seu homem e ainda uma espécie de sentença de afastamento posto que finalmente ele não poderia achegar-se a ela a menos de cem passos medidos. A Elvira foi corajosa e a sua ação revolucionária mas talvez não todas as mulheres tenham a sua força ou a sua fortuna. É aí que o modelo da denúncia quebra. É bom que haja mulheres prestas para reagir, para “empoderar-se”; o que me produz dúvidas é se o modelo pode universalizar-se: se todas temos que ser empoderadas, ou mesmo se é lícito reclamar para nós uma arma de domínio, tal e como se identifica o poder na primeira aceção. Porque talvez seria possível, e mais adequado, romper o baralho do poder e criar um mundo novo, fundamentado noutras normas. A luta do subcomandante Marcos, que cito aqui como personagem do imaginário zapatista mais que como indivíduo particular, foi qualificada muitas vezes dum intento de mudar o mundo sem tomar o poder. Porque, estou certa, o poder mancha e o mais desejável é que nem nos toque a roupa.
Em Les héritiers, o sociólogo Bourdieu indicava que toda ação pedagógica é uma forma de violência simbólica. Nem só quando o mestre bate ou castiga é que abusa. Simplesmente, a obriga de julgar, a capacidade de castigar implícita na figura tradicional do mestre, é violenta. E avisava também nesse livro potente e lúcido de que, quando ensinamos exercemos o poder simplesmente porque garantimos que os valores burgueses acabem sendo os principais. As crianças e, em geral, os aprendizes de qualquer idade acabam por assumir que a música de ópera é mais e melhor música que a duma banda heavy -embora gostem menos dela- ou que os autores galardoados com o prémio Nobel compõem o mais seleto da produção literária, de forma que os indivíduos de classe burguesa, com biblioteca na casa e costumes refinados estão preparados para o ascenso social em maior medida que os do proletariado, carentes desses modelos de referência e -importante dado- desse desejo de agradarem o professor. Com esta perspetiva crítica de fundo, toda ação de poder deve levar consigo o seu freio para evitar o abuso porque mesmo um professor responsável e bem preparado que realizasse o seu ofício com rigor poderia estar a propagar a ideologia dominante num exercício claro de poder. Na vida social assumimos ordinariamente que todos os grupos têm a sua própria representação da realidade mas que não todos podem explicitá-la: os grupos sociais melhor assentados, com maior capacidade de tornar poder (por controlarem as massas, por lograrem que adiram uma postura, por ter-se tornado licita ou ilicitamente nos seus representantes) são os que fazem valer as suas vozes. Voltando à nossa questão, se empoderar mulheres é o objetivo é porque se imagina -o feminismo imagina- que o freio ao poder que as mulheres exerceriam viria dado pelo próprio sistema patriarcal: são pequenas liberdades que se conquistam com dificuldade, que se arrebatam.
Na prática podemos concordar bastante com esta opinião mas isso não significa que seja perfeita, nem mesmo que o modelo de empoderar mulheres não seja lesivo. De entrada, deixa fora aquelas que por temperamento ou por condições particulares não sejam quem de levantar a sua voz. Para além disso, implica que as mulheres devem exercer uma crítica radical contra todas as estruturas de domínio, um esforço que não se lhes demanda por igual aos homens com que se relacionam, tornando-as particularmente desclassadas, fora da medida social. Mas ainda há algo mais insidioso: é que as mulheres teriam que ir logrando a justiça a base de lutar da manhã à noite sem descanso, e com o perigo acrescentado de ficarem sem norte.
3. No movimento feminista dos últimos anos vem sendo habitual referir-se em termos positivos ao conceito de empoderamento. Supostamente os ativismos feministas destinam-se a empoderar mulheres ainda que, como é de esperar, sob esta expressão latejem diferentes pontos de vista relativos ao espaço social que na teoria as mulheres deveriam ocupar. Nalgumas perspetivas empoderar mulheres seria tanto como colocá-las em posições dirigentes. Do ponto de vista de rachar tetos de cristal, deslocar as mulheres dos trabalhos pior pagados ou dotá-las de responsabilidades seria um objetivo urgente na agenda feminista. É óbvio que esta perspetiva atrai singularmente as mulheres mais ambiciosas, que desejariam contar com postos reservados por cota para superar o tradicional desequilíbrio sexual. Porque, ainda hoje, cada vez que olhamos nos jornais as fotografias dos que realmente tomam as decisões importantes no mundo, uma observação imparcial permite comprovar que tal imagem está masculinizada. Porém, esta perspetiva não está bem fundamentada: que muitas mulheres -muitos seres biologicamente femininos- ocupem os postos de mando pode ser reclamado como uma primeira manifestação de justiça, é certo, mas não vai questionar os alicerces dum mundo ferozmente competitivo, capitalista e desigual -a menos que aceitássemos que a simples incorporação de seres com vagina muda substancialmente a ordem de coisas por acrescentarem qualidades essenciais femininas como a ternura, questão esta que o feminismo em termos gerais vem negando ao longo da história. Este empoderamento que apenas afetaria uma elite de mulheres preparadas e competitivas pode ser uma aspiração justa de minorias que procuram a restituição histórica mas, como vou tentar demonstrar, negará boa parte da ação feminista mais transformadora.
Para definir o conceito de poder recorre-se à capacidade legislativa ou jurídica de impor uma vontade. Deste ponto de vista, empoderar mulheres seria tanto como procurar que a torta do poder se partilhasse equitativamente entre os sexos para conseguirmos uma distribuição mais justa. Só um pensamento marcadamente conservador poderia apor argumentos contrários a esta demanda e seriam restrições do tipo de “que fazer quando não estiverem suficientemente preparadas essas mulheres?”, uma objeção que pode desarmar-se, visto que mulheres altamente qualificadas padecem situações de injustiça na sua valoração profissional por dedicarem muitas energias a atividades distintas (e anti-capitalistas) como o cuidado de filhas e filhos, de maiores, ou a atenção às relações sociais e de amizade e não só ao ascenso material. Porém, dum ponto de vista transformador, cumpre lembrar que os feminismos nascem da crítica radical às relações de domínio que assim não se corrigem nem se eliminam: simplesmente consegue-se a cumplicidade das mulheres com o sistema -quando menos das afortunadas escolhidas-. Muitas feministas estariam talvez prestas a defender que o mundo seria melhor se as mulheres governassem. Mas sabem que devem ficar caladas quando se mencionam os nomes dalgumas que exercem cargos de grande responsabilidade com perspetivas de tirano, que mantêm praticas repressoras ou que exclamam “eu não sou feminista, sou feminina”.
Vamos com a outra possibilidade. Se o poder fosse entendido na pura hipótese de fazer algo, o empoderamento poderia qualificar-se como uma das formas da autoestima. As mulheres seriam capazes de rachar laços que as sufocassem, de decidirem em liberdade.
4. Lakoff falava nos '90 das extensas possibilidades na vida política americana das metáforas de bons e maus. As ações militares norte-americanas contra a invasão iraquiana do Kuwait em 1991, o que se deu em chamar a Guerra do Golfo, tiveram um grande apoio nos Estados Unidos e em certos sectores ocidentais, segundo Lakoff, porque o presidente Bush situou a campanha num exercício retórico para concitar o apoio ao castigo do presidente do Iraque sobre a base mitológica dos contos de fadas. No discurso do presidente norte-americano, depois amplificado pelos meios de comunicação social, o conflito bélico adequava-se aos contos clássicos que podemos esquematizar, com ligeira ironia, como se segue. Aparecem como personagens um malvado, uma vítima e um herói, ainda que estes dois possam coincidir na mesma pessoa. O malvado comete um crime contra a vítima. O delito sucede pelo desequilíbrio de poder e cria um conflito moral. O herói pode procurar quem o ajude ou intervir sozinho, mas sacrifica-se e padece dificuldades, habitualmente realizando uma perigosa viagem por mar para chegar a terras desconhecidas. O malvado é inerentemente perverso, mesmo um monstro, de maneira que não tem sentido tentar de raciocinar com ele; o herói não tem outras opções além do combate. Finalmente, o herói vence o malvado e resgata a vítima, restaurando o equilíbrio moral depois de atuar a todo o momento de forma honorável, demonstrando a sua virilidade, aspetos que lhe valem a glória final e a gratidão da vítima e da comunidade, de modo que o seu sacrifício inicial valha a pena. Pois bem, na versão do conto de fadas da guerra do Golfo como guerra justa, os soldados americanos são o herói, enquanto Saddam Hussein era o malvado e Kuwait a vítima inocente do assalto. Nos diferentes encontros com os meios de comunicação social, o discurso militar do governo norte-americano do momento salientava estas tipificações a fim de produzir a interpretação conforme com o código implícito na leitura dos contos de fadas, um género que deixou pegadas na mitologia clássica e que se irá desenvolvendo durante a Idade Média até à sua eclosão na literatura burguesa do século XVIII. Outros motivos que, como metáfora conceptual, também operam nas nossas vidas quotidianas chegaram igualmente desta atmosfera dos contos infantis, como “o verdadeiro amor sempre triunfa” ou “a tenacidade e a constância asseguram o sucesso”.
Pois bem, o feminismo também utilizou estas metáforas conceptuais baixo a forma de re-escrituras que tantas vezes na literatura feminista temos praticado. Ao re-escrever a Cinderela lilás, a protagonista estará farta do príncipe e há criticar as modas que canonizam um tipo de corpo entre outras mil reivindicações. Ou ao re-escrever a história do Chapeuzinho vermelho pode-se violar o lobo. É um trabalho didático, que serve para visualizar o mundo ao revés para quem ainda não percebeu o seu desatino, mas tem limitações porque a reapropriação marca os seus próprios ritmos. Porei um exemplo doutro campo.
Como tática de reapropriação o feminismo contemporâneo em muitos dos seus ativismos está a propor o uso do feminino genérico. Dito em breve, após ter denunciado a invisibilização das mulheres derivada de falsos genéricos como “os romanos” que constroem impérios ou “os cientistas” que elaboram complexas teorias -com exclusão evidente das mulheres do Império romano ou da história da ciência- muitas das ativistas começam a usar um feminino irónico que universaliza a forma gramatical esquecida e assim dizem: “as romanas” ou “as cientistas”. Há, também aqui, um afã didático mas carregado de riscos. O primeiro o de não sermos entendidas. Como linguista implicada na defesa de modelos de língua inclusivos levo dito muitas vezes que o feminino genérico pode ser potente visualizador da assimetria em muitos contextos informais da vida e aí conserva toda a sua força revolucionária e a sua ironia. Porem, também indico que quando entro numa aula como representante do poder -como professora- guardo-me muito de utilizá-la. Porque não quero que os homens que me escutem possam pensar que nos estamos a vingar, que lhes estamos a devolver a mesma injustiça historicamente praticada sobre as mulheres ao reduzi-las ao não-ser. Pessoalmente, não desejo ser mal interpretada. E, como a maior parte das técnicas de guerrilha da comunicação, o feminino genérico não é um objetivo em sim próprio... mas apenas um arma. Quando tens uma faca na mão pode servir para pelar uma fruta ou para matar outro ser humano, depende do seu uso. Como o feminino genérico. Ou como o empoderamento.
5. Mas sigamos com a técnica da reapropriação, tão intensa no ativismo. Basicamente consiste em utilizar com sentido positivo o que se pronunciara tradicionalmente de maneira pejorativa ou com a intenção óbvia de praticar uma discriminação. Assim, o uso de nigger, em inglês, como o do preto do galego-português ou o negrata do espanhol coloquial são reclamados pelos movimentos de orgulho da raça negra para dignificar esse coletivo. Igualmente, um grupo de artistas feministas pretenderam renovar a arte contemporânea a partir do manifesto que assinaram como “raposas mutantes” em clara identificação com o nome do animal que mais vezes é utilizado para insultar mulheres ou, finalmente, o movimento LBGT conseguiu, através da iteração, desemantizar o termo queer que hoje, em vez de nomear a homossexualidade para fazer troça é utilizado academicamente sobretudo para aquilo que não é discreto, que não é uma simples questão de sim ou não. Em todos os casos precedentes, as reapropriações implicam dar volta a um uso como reivindicação duma identidade marginal. E nesse sentido contribuem a fazer florescer a ideia de que nada há tão cheio de vida como as margens, que são, por definição, contra-poder. Judith Butler teve que escrever muitos textos complexos e por vezes especializados para explicar que não vai ser depurando que consigamos nada, mas fazendo-nos com os significados das palavras, enchendo-os de novos valores. Se me chamo de puta, não prendo usar palavrões na conversa e insultar prostitutas mas apresentar-me como forte, independente e sexualmente liberada. Obviamente o sucesso destes processos pode ser discutido posto que a sociedade adora as mensagens unívocas e terrivelmente simples, ainda que me declaro fervente partidária destas provocações.
As reapropriações exigem um esforço intelectual; isso pode assumir-se, mas fazem avançar o pensamento de maneiras impensáveis. Com frequência muitas de nós, feministas, somos convidadas a falar em foros politicamente corretos do uso e abuso do corpo feminino nos meios de comunicação. E às vezes, movidas pelo espírito militante, nem vemos a armadilha. Escrevemos palestras ou desenhamos intervenções para persuadir o auditório de que, efetivamente, a beleza dalguns corpos femininos é tratada com critérios mercantilistas na publicidade. Escolhemos fotos atrevidas ou slogans que para muitos som piadas e argumentamos. Porém esta prática, por bem intencionada que estiver, alimenta o modelo burguês: as mulheres devem estar vestidas. Contudo, muitas artistas feministas fizeram performances onde utilizaram os seus corpos nus. Quando Ana Mendieta ou Valie Export se fotografam despidas é difícil considerá-las como meros objetos porque são proprietárias dos meios de produção e também as mentes que desenharam as fotos. Dificilmente podemos ver os seus despidos como uma exibição do seu corpo. E, ainda mais, as suas fotos dão a força necessária para que já, nunca mais, o corpo das mulheres, visto e exposto até a saciedade, sirva para ilustrar nenhum tipo de submissão: as mulheres decidem também -a partir de artistas que se expuseram- usar os seus corpos como obra de arte porque deixaram de ser as modelos perfeitas da publicidade para ser pura mensagem. É certo que muitas delas foram acusadas de narcisistas. Hannah Wilke fotografou-se incansavelmente despida em posses de pin-up mas a visão das suas fotos como um catálogo erótico carece de fundamento. Especialmente quando um cancro que acabaria com a sua vida a deitou na cama e ela, sem cabelo, com o corpo esculpido pela cortisona e o instrumental médico unido com válvulas a sua pele, já em estado terminal, continuou a fazer-se fotografar despida, num relato sobre o tempo e o corpo duma radicalidade inimaginável que se prolonga até a mesma agonia.
Estou a favor das reapropriações pelo seu poder para introduzir relatos diferentes e não triviais. Nesse sentido poderia pensar-se que todo o escrito está de mais, que é possível reapropriar-se do termo poder e desenhá-lo em clave feminista. Sou cética, no entanto, sobre tal possibilidade porque nem todos os feminismos nem todas as feministas são iguais e porque, dado o desequilíbrio real entre a posição habitual de homens e mulheres no mundo, a ironia não pode funcionar. Não aqui. Se nigger ou queer podem mudar o significado é pela existência de movimentos de orgulho; por um relato de resistências que se traça nas margens e pode ser decodificado em todas as esferas sociais. Se as fotografias de Hannah Wilke funcionam como referências positivas é após um trabalho intelectual; não ainda no conjunto da sociedade que continua a ler as imagens da pornografia como o que originalmente foram: produtos ao serviço das fantasias eróticas dos varões. A palavra poder não admite, num mundo beligerante, absurdamente competitivo, cheio de atrozes diferenças de classe, contaminado, inóspito e feroz uma leitura irónica. Não ainda.
6. Numa versão mais académica do que este breve texto pretende seria necessário para fazer crítica do poder recorrer a fontes doutas, especialmente a Nietzsche que defendeu em textos de grande valor poético que finalmente os seres humanos somos pura vontade de poder. Porém, ocasionalmente e em meio da beleza da sua expressão filosófica, Nietzsche pisa linhas vermelhas.
Os filmes americanos transmitiram repetidamente a ideia já insinuada na literatura prévia do poder feminino sob a forma, levemente reacionária, das armas de mulher: uma mulher atrativa pode vestir-se ou atuar provocativamente e exercer assim o seu poder sobre o homem. Não é, com efeito, isto ao que se refere o feminismo quando fala em empoderamento mas cumpre não deixar solto nenhum cabo. A mulher sexy passeia como garota de Ipanema e o homem vê-se compelido a desejá-la. O feminismo trabalhou duramente para deslegitimar a leitura do suposto poder feminino. Se os homens tivessem que responder com um ataque sexual, a violação estaria justificada, como se lê algumas vezes nas nefastas sentenças onde uma mini-saia serve de escusa. O feminismo conseguiu uma vitória eliminando esse absurdo conceito de poder. Não é o argumento crucial mas pode servir para reforçar a crítica contra o poder... e o empoderamento.
Igualmente, na cultura tradicional, as mulheres podiam ser domesticadoras de homens. Isso significa que “naturalmente” -seja isso o que for- o homem tende a ser selvagem: gosta de beber, dos excessos, da promiscuidade e a mulher é a encarregada de melhorá-lo, ainda que o preço que ele deve pagar é o de perder a liberdade, posto que no relato a mulher aprisiona o homem numa relação -veja-se as despedidas de solteiro e o mito de que o homem perde a liberdade, contradito na sociedade pela quantidade de divorciados que não tardam em casar de novo frente à frequência com que as divorciadas se mantêm livres-. Acho que o feminismo também não deve pretender formar mulheres polícia para evitar os excessos em drogas “naturalmente” masculinos e formar cidadãs respeitáveis. Isso seria tanto como pisar linhas vermelhas.
7. Na tradição de pensamento anarquista o poder não é um lugar desejável nem seguro. Na tradição de pensamento foucaultiano o poder reaparece insidiosamente onde nem o imaginamos nem o percebemos. Escrevo para dizer que estas duas tradições estão no cerne dos grandes acertos do feminismo: o carácter descabeçado dos movimentos sociais, a crítica da competitividade e dum liderado que não seja entranhável. Queremos mulheres independentes, autoestimadas e que possam ser compreendidas: seres inteligíveis que não utilizam as armas do inimigo -do capitalismo, da competitividade, do PODER, que não desejam que essas armas as toquem. Enquanto escrevo, uma amiga vem contar-me uma anedota da sua vida. Após um encontro sexual esporádico com um amigo, ela escreve-lhe uma mensagem no telemóvel de tom afetuoso. E ele vê-se compelido a exprimir o tabu das relações sexuais que se pretendem esporádicas: que ambos são livres e, portanto, argumenta ele, a expressão afetiva está de mais. Ela, com palavras informais, detalha-me a sua deceção, a sua incapacidade para ser compreendida e aceite como um ser que não renega da ternura. Solidarizo-me com esse sentir. Num mundo hostil e antigo, os cuidados apenas pertencem ao território formalmente -ou contratualmente- estabelecido do amor. As mulheres empoderadas talvez saibam quando são carne crua sobre o lençol e quando são companheiras... e apenas nesse caso está codificado introduzir as palavras de afeto. Mas as mulheres livres talvez possam dedicar a tudo -aos seres importantíssimos que vão encontrando na vida, igual que aos animais, aos livros, às boas ideias libertadoras e ao asfixiado planeta em que moramos- os sentimentos positivos que se desprendem delas. Isso exige sitiar o poder; renegar dele, também do que o poder faz nas nossas camas. E negar à palavra poder tem toda a capacidade de construir um mundo alternativo.
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Não pude seguir lendo após os dois primeiros parágrafos e da estranha noção que esta senhora tem da ideia de empoderameento. Val que agora Teresa Moure, ex-candidata ao Senado entre outras coisas, descobriu a moda do Não-Estado e tenha decidido começar outra mais das suas muitas reconversoes, e agora lhe tocou ao libertário.
ResponderEliminarComo quase sempre, Teresa Moure tem mui pouca ideia do que diz. Não vou falar do texto, mas para começar não estaria mau entender que é o empoderamento. Este é um conceito definido por Paulo Freire na sua ideia de pedagogia embora desde os anos oitenta se tenha aplicado maioritariamente ao feminismo, e significa nem mais nem menos que a tomada de controlo por parte das pessoas oprimidas, ou em situações subalternas, para reverter positivamente as circunstâncias. Nada mais, nenhuma ideia há de poder nesse conceito, senão de posta em valor.
Teresita nunca entendê-lo-á.
E não vamos seguir com aberrações como a de incluír Foucault e anarquismo na mesma frase.
A verdade, nunca pensei que Abordaxe acabaria repetindo as escorrentias mentais de uma socialdemocrata do mais infame.
PAra Abordaxe é posible ser libertaria desde o Consello Nacional do BNG e non desde a CNT? Gustariame que eDu aclarase isto.
ResponderEliminarXa tardaban xs pesadxs estes da prensa rosinegra. Bon , iba escribir unha resposta pero creo que Edu deixa todo mais que respostado no que se refiere a Abordaxe. Suscribo todo o que escrebeches.
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