4 jun 2013

Turquia: Impressões do movimento de protesto em Ankara

Colamos da web do colectivo Passa Palavra (‬um grupo de orientação anticapitalista, independente de partidos e demais poderes políticos e econômicos, formado por colaboradores de Portugal e do Brasil), quem a sua vez traduziu do blogue comunista libertário Lib.com :

De forma similar à grande parte do movimento Occupy, as táticas dos manifestantes até agora têm sido bem mais radicais que os seus objetivos proclamados. Por Chilli Sauce

Eu venho vivendo em Ankara nos últimos seis meses e ontem à noite tive a oportunidade de participar do protesto principal na cidade. De nenhuma forma quero dizer que esse relato é completo e comentários, adições e correções de outras pessoas que estejam mais familiarizadas com a situação com certeza serão bem-vindos.

Vou começar com algum contexto, depois chegar com um pouco de relato pessoal e terminar com alguma análise das táticas de protesto.

A situação política na Turquia: de um lado, temos um governo neoliberal, abertamente islâmico e cada vez mais autoritário no poder, o Partido AK. Na oposição, temos uma grande parte da população que se identifica com a tradição “Kemalista” de Kemal Ataturk, o fundador e primeiro líder da Turquia moderna. Há um verdadeiro culto de personalidade em volta de Ataturk e a sua foto pode ser encontrada em literalmente todo prédio público e lugar de negócios. Literalmente todos. Para os seus apoiadores, ele representa o secularismo e um liberalismo social estilo europeu que servira como barreira entre o povo e um governo abertamente islamista.


Todos os grandes partidos são abertamente nacionalistas e o principal símbolo que eu tenho visto durante os protestos vem sendo a bandeira nacional turca. Mas, frequentemente, parece que Ataturk é um símbolo que expressa ‘all things to all people’, expressa as queixas relativas a questões que vão desde o crescente fundamentalismo religioso, questões sociais, a crescente erosão das liberdades civis, a corrupção governamental chegando até a preocupações econômicas.

O Partido AK (Partido da Justiça e Desenvolvimento) é o mais forte nas partes rurais da Turquia e a resistência ao governo tem sido mais forte nas cidades de Istambul, Ankara e Izmir, mais tradicionalmente liberais, tendentes à esquerda ou mais europeizadas. A esquerda turca é maior do que qualquer uma que eu já vi nos Estados Unidos ou na Inglaterra e parece ser dominada pelos leninistas. A presença anarquista, para ser otimista, é quase nula. Em termos de atividades tradicionais de luta de classes, o Primeiro de Maio é gigantesco, só que eu ouvi falar pouco de ações grevistas além de alguns dissídios extremamente limitados localizados em Istambul.

Para aqueles que não sabem, a situação começou quando o governo anunciou um plano de limpar um parque na parte Taksim de Istambul. Além das preocupações ambientais, trata-se de um dos pouquíssimos espaços verdes na cidade. Quando chegou o momento dos tratores chegarem ao parque, os protestos e uma ocupação se iniciaram. A polícia apareceu, expulsou violentamente os ocupantes, queimou tendas e pertences, e usou gás lacrimogênio e canhões de água para limpar o acampamento. Dezenas de pessoas foram feridas, algumas seriamente, tendo inclusive relatos de manifestantes perdendo olhos devido à violência.

Isso apenas gerou mais protestos e, dentro de 48 horas, manifestações simultâneas começaram a acontecer em outras cidades. Claro, os protestos são sobre muitas coisas mais do que o Parque Gezi. Trata-se da culminação de tensões crescentes contra o governo de Tayyip Erdogan. E vem se tratando de um movimento realmente de base. Militantes profissionalizados estão presentes e políticos da oposição estão tentando capitalizar politicamente em cima do movimento, mas a vasta maioria das pessoas está participando porque está autenticamente indignada. O Parque Gezi apenas providenciou a fagulha que libertou a explosão da raiva reprimida.

Acredito que essa é parte da razão pela qual as bandeiras são tão proeminentes. As reivindicações de certa forma ainda não se articularam em um discurso próprio e ficam escondidas por trás do discurso político padrão. Os anos sessenta e setenta foram de grandes ebulições sociais na Turquia. Mas, desde o último grande golpe militar em 1980, a resistência ativa ao governo não tem estado nas ruas. A escolha tem sido entre os partidos de centro-esquerda, mas extremamente nacionalistas, partidos seculares e partidos islamistas. Em qualquer um desses casos, a aceitação generalizada do neoliberalismo tem sido o pano de fundo econômico com o qual essa nova onda de protestos se lançou. De qualquer forma, ainda é cedo demais para dizer se o atual discurso dos protestos pode expandir para incluir um entendimento mais profundo das questões de classe e ir além de um nacionalismo reativo.

Novamente, gostaria de clarificar aqui: eu não falo turco, vivo em uma cidade e o meu domínio de história da Turquia não é fantástico. Essas são apenas impressões e eu gostaria de ser corrigido por aqueles com mais conhecimento de causa.

Alguns na Turquia vêm chamando essa onda de protestos de “Primavera Turca”. A mídia ocidental já iniciou as comparações entre a Praça Taksim e a Praça Tahrir no Egito. Eu não estou em Istambul, mas esse tipo de pronunciamento me parece prematuro. O Primeiro Ministro vem mantendo uma postura de desafio e, apesar de toda a brutalidade já feita, ainda não foi usada toda a força do Estado. As coisas provavelmente vão ficar bem mais sinistras e nesse ponto não será uma questão de salvar Gezi (o primeiro-ministro), mas de uma renúncia do atual governo. Muito disso, claro, vai depender da habilidade dos manifestantes em não apenas manter o impulso, mas também desenvolver táticas mais sofisticadas contra a polícia.

No momento atual, o movimento está em todo lugar. Ele domina as redes sociais (apesar de haver relatos de que o twitter e o facebook foram derrubados), é o único assunto que as pessoas discutem nos ônibus e eu consigo ouvir do meu apartamento um coro constante de buzinas de carros.

De forma similar à grande parte do movimento Occupy, as táticas dos manifestantes até agora têm sido bem mais radicais que os seus objetivos proclamados. Os protestos em Istambul podem ter começado pacificamente – eu não sei se foi assim – mas qualquer pretensão de pacifismo desapareceu. As pessoas aparecem preparadas. Há uma expectativa de que os manifestantes vão sofrer ataques de gás lacrimogênio e eles vêm com máscaras cirúrgicas, lenços, máscaras de gás caseiras e uma variedade de remédios caseiros contra a exposição ao gás (que, acreditem, não é muito divertido). E os que trazem são, frequentemente, manifestantes de primeira viagem. Eles sabem o estilo da polícia, vão na internet descobrir como se recuperar de um ataque de gás lacrimogênio e entram no protesto tendo o pleno conhecimento de que eles provavelmente vão dormir com os olhos queimando e com dor de cabeça. Toda vez que um espaço público é tomado pelos manifestantes, uma fogueira se acende. O protesto começa a cantar palavras de ordem e bate ruidosamente em qualquer coisa disponível. O grafite está em todo lugar.

Atualmente, a principal tática parece ser ondas de pessoas aparecendo, levando gás lacrimogênio, dispersando e sendo substituídas por mais uma onda de manifestantes. Essa tática também tem o suporte das fogueiras e das barricadas, algumas das quais são feitas de ônibus e lojas de venda de comida cujos proprietários têm laços com o atual prefeito da cidade.

Eu devo dizer que só posso falar pela situação em Ankara. Meu entendimento é que a polícia está agora permitindo protestos em Istambul e o ponto focal do enfrentamento se transferiu para cá, Ankara, a capital da Turquia.

Nos últimos dias, os protestos vêm crescendo e não mostram nenhum sinal de enfraquecimento. Mas a energia e determinação não são suficientes. A resposta da polícia vai continuar a ser pesada e simplesmente ocupar um espaço público não será suficiente para a vitória do movimento. Ele vai precisar conseguir vitórias efetivas contra a polícia.

Felizmente, como o movimento estudantil de 2010 na Inglaterra demonstrou, as pessoas antigamente consideradas ‘despolitizadas’ são extremamente capazes de aprender com suas próprias forças e desenvolver táticas efetivas para continuar a luta. O fato de que a pretensão ao protesto pacífico foi corretamente abandonada parece sugerir que o espaço para uma resistência mais efetiva é bastante amplo.

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